sábado, 23 de agosto de 2008

Agnósticos têm pés de barro...



“Porque agora vemos por espelho em enigma, mas então veremos face a face; agora conheço em parte, mas então conhecerei como também sou conhecido” (1 Co 13:12).


Seu Téo não acreditava em Deus, e gostava de falar sobre isso. Como prova de sua convicção repetia invariavelmente: alguém já viu Deus, ouviu sua voz, tocou nele?

Alguns teistas replicavam que a lua, as estrelas, o mar,o sol, a chuva,os dias que se sucedem, o universo, o desabrochar de uma flor,são provas da existência de Deus.

Seu Téo contra argumentava, eu acredito na lua, nas estrelas, no mar, na chuva porque os vejo, ou toco, ou sinto seu cheiro...,e o universo nasceu de uma grande explosão, os dias se sucedem por causa do movimento da terra, o próprio homem é resultado da evolução das especies.Eu em outras eras fui macaco, um tal de Darwin explica isso muito bem...

Todas as manhãs ocorriam tais embates, no local de trabalho de seu Téo - uma sapataria, onde ele confeccionava alpargatas e botinas. Diga-se de passagem, que sua produtividade não era abalada pelos debates, de cabeça baixa enquanto cortava, costura suas peças, ou batia pregos, Seu Téo discorria mansamente. E que fique claro, Seu Téo era muito educado e inteligente, tinha estudado em colégio de padres. Na sua modesta casa tinha num canto da sala uma estante com livros amarelecidos pelo tempo, era neles que seu Téo buscava apoio para sua descrença.

Aquele local de trabalho e de debates era frequentado por três grandes amigos de seu Téo: um crente fervoroso, um espirita, e um terceiro que não sabemos, ou identificamos, seu credo, creio que era um cético, pois apenas ria-se com o canto dos lábios, ora meneava a cabeça em sinal de aprovação ou de desaprovação.

Eventualmente apareciam clientes, ou interessados nos debates, ou ainda alguém que tinha curiosidade em conhecer um ateu, e ficavam impressionados com o tom respeitoso dos debates. Algumas ocasiões havia só perguntas, a parte adversa pedia respeitosamente para responder só dia seguinte. No dia seguinte, certamente haveria expectadores.

Seu Téo, se explicava: Nunca vi, não sei onde mora, nunca fomos apresentados, nesses meus sessenta anos de idade nunca ouvi falar de alguém que o hospedou, recebeu carta, telegrama, ou telefonema de Deus, enfim ninguém nunca o viu.

Os moradores do povoado tinham uma certa complacência com Seu Téo, seus pais faleceram quando ainda era criança, quando estudante interno fora muito reprimido pelos padres, não casara, nem tivera filhos...

Numa dessas manhãs pasmacentas, uns gritos aflitos quebraram a monotonia rotineira. Todos saíram do interior de suas residencias, ou das lojas e acorreram em direção aos gritos. Encontraram um pequeno grupo de homens; cachorro louco, diziam todos ao mesmo tempo, vamos atrás, cachorro louco...

Alguns homens apareceram com suas velhas espingardas, revolveres e até porretes e saíram em disparada na direção que supostamente o cachorro louco tomara. Seu Téo juntou-se ao grupo.

Olha lá, é cachorro, o cachorro louco...Alguém dispara um tiro e,...oh céus, a bala se alojou no pé de Seu Téo.

Atônito, Seu Téo, choraminga: por quê comigo? Depois eleva a voz: Ai Deus, sempre fui bom filho, bom amigo, bom empregado um bom cidadão, por quê comigo?

Passadas as primeiras horas, já medicado, seus três inseparaveis amigos foram visitá-lo.

Então Téo, acreditas em Deus, pois hoje tu o chamastes em alto e bom som.

- Eu o Chamei?
- Sim, todos ouviram.
- Força de expressão...
- Quer dizer que, você é o mesmo velho ranzinza de sempre, e que nem mesmo o risco de morte o fez mudar de idéia a respeito de Deus.
- Eu só acredito naquilo que pode passar pelos meus sentidos, não vi, não ouvi, não toquei Deus.
- Vamos mudar de assunto disse o cético. Sentiste muita dor?
- Ah, é impossível descrever a dor, a primeira impressão é que fui atingido por uma montanha de ferro, e depois o calor e o ardor é tamanho que parece que atolei o pé numa lava incandescente de um vulcão.
- Pois eu acho, diz o crente, que não há dor nenhuma.
- O quê, estás a duvidar de minha palavra? Se digo que estou sentindo dor, é verdade.
- Vistes a dor, sua cor, seu tamanho?
- Claro que não.
- E como tens certeza que a dor existe?
- Eu posso senti-la.
Fez-se silêncio profundo na saleta.
Após alguns minutos de silêncio Seu Téo diz: entendi, muito convincente seu argumento, me curvo.
Os amigos de Seu Téo sempre tão comedidos não se contém de alegria, dão urras e vivas. Viva o cachorro louco! Viva a bala que atingiu o pé de Seu Téo! Viva a dor, que Seu Téo sente, e só ele sente! Viva Deus, que não vemos, mais o sentimos!
Alto lá, vamos parando, não exagerem... diz seu Téo.

- Mas o Senhor acabou confessando que crê. Se crê não é mais ateu ....
- E verdade, não sou mais ateu. Agora sou Agnóstico.
- Agui o quê?
- A- G-N-O-S-T-I-C-O!

Pois é, a noticia da "conversão" de seu Téo espalhou-se, as pessoas comentavam: Seu Téo não é mais ateu, mas também não é católico...
Eu tinha , então nove anos, e vi Seu Téo sendo amparado por seus amigos, e se lamuriando pelo tiro de raspão que levara no pé.

Fiquei dias e dias a pensar no fato. Se ele acreditasse em Deus, será que desacreditaria ao levar um tiro de raspão? E, se em vez de ser no pé, fosse em um orgão vital, será que antes de dar o ultimo suspiro ele diria: Ó Deus...; que nova religião era essa que ele agora dizia ser seguidor? Agnóstico, será alguém que acredita em Deus, mas não gosta de padres?

Trinta anos depois, vi um candidato a Presidente da República perder as eleições, respondeu em rede nacional, quando perguntado se acreditava em Deus, que era Agnóstico. Ele mesmo deu-se um tiro no pé...




sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Acorda Rosa

Acordei com o barulho dos afazeres doméstico. Sempre acordo de mau humor. Olhei para o teto, um raio de sol teimava em entrar. Ainda na cama, me olhei no pequeno espelho, não sou feia, nem bela, sou diferente da maioria dos habitantes da região que têm pele tisnada e cabelos crespos. Tenho olhos azuis, pele pálida, cabelos loiros lisos e por isso sou alvo de gracejos. Meus colegas e, até alguns de meus professores, me chamam de Flor de Algodão, Copo de Leite, Branca de Neve.
Ouvi a voz irritada de minha tia: "Levanta, menina, passarinho que nada deve, faz tempo que saiu do ninho; em quinze minutos vou retirar a mesa, próxima refeição só na hora do almoço."Bom , se vou ficar sem o café da manhã, melhor dormir mais um pouco, ou melhor, ficar mais um pouco debaixo das cobertas quentes, deixar o tempo passar e remoer pensamentos".
Perdi o desencanto com a raça humana aos seis anos, desde então não sou alegre e nem triste, sou introspectiva. Gosto mais dos personagens da literatura do que os da vida real.
Li, aos doze anos a trilogia de Veríssimo, e pasmem, li Marquês de Sade. Leitura sempre foi meu lazer, meu refúgio e, também, minha fuga da realidade. Li tudo que caiu em minhas mãos, que pena naquela cidade atrasada não tinha bibliotecas. Na prefeitura local tinha uma sala com alguns livros encaixotados, outros espalhados pelo chão, e foi de lá que retirei alguns livros empoeirados, sem ficha técnica, sem qualquer orientação.Também, costumava catar do chão das ruas, revistas velhas, fragmentos de livros, e até folhas de velhos jornais.

Costumava fixar o olhar em algum ponto ou pessoa por longos períodos, tal hábito afugentava as pessoas de minha presença, criava certo desconforto na maioria das pessoas. Mais tarde vim a saber que tratava-se de síndrome do olhar fixo. A maioria me achava estranha, outros diziam coitada, sem pai, sem mãe..
Casei-me-se aos dezessete anos, com um militar da cavalaria, e nove meses depois estava viúva. Meu marido foi vitimado pelos bacilos de Koch. Para evitar mais preconceitos dizia que meu marido adoecera e morrera em conseqüência de uma queda de cavalo, por isso vomitava sangue. De nada adiantou, as pessoas me evitavam, temiam que tivesse contraído o mal e, assim, as contaminassem.
Vesti preto até a missa de sétimo dia. Depois recusei-me-se a vestir roupas de viuvez. Que escândalo, uma viúva que não veste preto por pelo menos um ano...
Na semana que completei dezoito anos, três meses após ficar viúva, aproveitei uma carona e fui à capital para fazer meu documento de identidade. Fiquei hospedada na casa de um primo. Ao ser recebida, sem muitas efusões, informei que ficaria por uma semana, tempo suficiente para a feitura de meu documento de identidade. Naquele mesmo dia, postei uma carta que trouxera redigida, envelopada e selada. Informava que ficaria por um mês, fora muito em recebida, meus anfitriões faziam questão que permanecesse por um tempo maior, portanto não deveriam se preocupar com a minha permanência na capital, já estava com saudade.
No sétimo dia de minha estada, arrumei minha bagagem, despedi-me. Meu primo levou-me a rodoviária, pediu desculpas por não acompanhar-me até o embarque, estava atrasado para o trabalho. Riu-se a viuvinha, não faz mal, afirmou, já sou maior, e tenho RG, abanou a carteira com ares de felicidade, com se fosse um passaporte para o paraíso. Deu alguns passos e acenou. Dirigiu-se ao guichê, fez algumas perguntas e saiu sem comprar passagem. Saiu do terminal rodoviário, foi ao lugar informado pelo funcionário da empresa rodoviário, leu a placa publicação de anúncios - Jornal da Cidade. Entregou por escrito, para ser publicado, no dia seguinte, o seguinte texto: Faleceu ontem, vitima de acidente automobilístico, Rosana Nogueira - 18 anos.
Retornou à Rodoviária, foi ao guichê oposto, comprou uma passagem, correu para o embarque, o ônibus já estava com o motor ligado, foi a ultima passageira a acomodar-se. O passageiro ao seu lado comentou que ela quase perdera a viagem.

- É...
- Está viajando sozinha?
- Sim.
- Qual o seu nome?
- Rose
- Bonito nome, Rose, combina com você.
- Desculpe Senhor, fui orientada para não conversar com estranhos.
Abriu um livro numa página marcada e leu "conhece-te a ti mesmo".
Ouviu a voz irritada de sua tia: "Levanta, menina, passarinho que nada deve..." Remexeu-se na cama, na cama não, na poltrona, abriu os olhos e fitou a estrada reta longa, parecia infindável..., seu destino ainda estava longe, melhor fechar os olhos e remoer suas lembranças.
Passarinho que nada deve, ora essa, por acaso eu devo algo, ou a alguem?. Talvez, deva a comida que comi, por todos esses anos, e a passagem que pagaram para ser trazida do interior de São Paulo , para aquela cidade do interior do Nordeste. Ora bolas, bem podiam ter me deixado em um orfanato, lá mesmo em São Paulo.As roupas e calçados que usei em toda minha infância e adolescência foram as usadas e herdadas de minhas primas.


Capítulo II

Ouviu seu nome sussurrado, acorda Rosa, preciso lhe dar uma noticia muito ruim. Era seu avô debruçado sobre a rede na qual estava dormindo. Acordou, mas continuou com olhos fechados. Por quê estava deitada numa rede, tinha certeza que se deitara em sua cama.Ouviu de noite barulhos estranhos, choro, ou tinha sonhado? Acorda, preciso lhe contar...

Lentamente, abro os olhos, meu avô estava com o rosto bem próximo ao meu, sua fisionomia, quase sempre serena agora diferente, alterada.
-Rosa, minha menina,você não tem mais mãe.
- Hã?
- Mataram sua mãe..
- Quem matou?
- Seu pai.
Eu só tinha cinco anos, nunca tinha ouvido falar em morte de humanos. Morava na fazenda já tinha presenciado, muito compungida, morte de galinhas e perus para alimentar a família. Não entendia a razão da morte de humanos, entendo muito menos a extensão do significado morte.
- Rose, agora você é órfã.
- O que é órfã?
- Significa que você não tem pai nem mãe.
Ah, então meu pai morrera também. Puxei a coberta para cima da cabeça e dormi novamente. Não chorei. Odiei, meu pai, e com quase tanta intensidade, odiei o mensageiro da terrível noticia. Detestei a rede, fazia frio nas costas e nos pés, estes nunca mais se aqueceram, mesmo quando calçava duas meias, uma em cima da outra, eles continuavam frios.
Minha tia morava na mesma fazenda, e fui estimulada a ficar boa parte do tempo, na casa dela. Tinha outras crianças e um bebê recém nascido. Apeguei-me ao bebê, como se fosse uma boneca. Deixavam-me dar mamadeiras, e vigiá-lo nos banhos diários de sol. O bebê era frágil, doentinho. Morreu aos cinco meses. Não presenciei o sepultamento. Dia seguinte perguntei pelo bebê. Morreu, disse-me a tia. E o que acontece quando morre, perguntei . Nunca mais vamos ver, as pessoas que morreram disse a mãe do bebê com um semblante sombrio.
E foi aí que decidi nunca mais gostar de ninguém. Todos as pessoas que eu amava morriam, minha mãe, meu priminho, e até um porquinho que havia ganho, todo se foram. Nunca mais os veria...
Abro os olhos e fito a estrada reta, parece infindável, ao longe o infinito, estrada e céu parecem se confundirem.

Capitulo III

Chego ao meu destino: a cidade de São Francisco tinha o milagre do emprego, estavam sendo anunciadas em revistas nacionais a construção de uma hidrelétricas. Procuro uma pensão barata.Que coincidência tinha muitas moças hospedadas, vinham de outros estados da federação e até de cidades vizinhas. Todas buscavam o cargo de professora, a empresa pagava bem.
Nos encontrávamos no café da manhã e conversávamos sobre nossas expectativas, e sobre nós mesmas. Eu principalmente, chamava a atenção por ser muito nova, e ainda parecer mais nova do que realmente era, ou talvez pelo semblante reflexivo
- Tens quantos anos ?
- 18 anos.
- Vens de onde?
Rosana, estremece, não quer mentir, construir sua vida sobre mentiras, mas também não suporta mais o olhar de piedade que é lançado sobre si desde a infância . Não quer e não precisa contar que é filha de um uroxida. As pessoas não precisam saber que teve um casamento relâmpago - casou-se enviuvou no mesmo ano...
- Hã, eu vim de Recife... (não menti, omiti a cidadezinha do interior).
Passei no concurso, a empresa ofereceu alojamento, o salário era muito bom mesmo, e ainda tinha participação nos lucros.
- A vida corria tranqüilamente, ensinava de manhã, almoçava no alojamento, fazia a sesta após o almoço, preparava a aula do dia seguinte. Escrevia um pouco no meu diário.
Contou para sua colega Zuleika um pouco sobre si: Meus pais morreram em um acidente automobilístico, quando tinha seis anos, não tenho irmãos, fui criada por minhas tias, cada seis meses mudava de casa, um semestre na casa de Tia Sônia, um semestre na casa de tia Beth...agora que completara dezoito anos estava conseguindo minha independência ..., mas não conta às outras, não gosto de falar do assunto.... Eu sabia que Zuleika não manteria segredo, por isso contei o que me convinha. Acertei. Dia seguinte na hora do café percebi olhares piedosos, prescrutadores, interrogativos, céticos, ou compungidos, nenhum de indiferença... Até a hoteleira me serviu uma fatia extra de bolo de chocolate!
Ainda bem que só contei o que de fato queria que as outras soubessem.